Mód. 6 - Textos de teatro

Vamos ver Auto da Índia

 
Parte 01

Parte 02

 

Parte 03

 

Parte 04

 

O "Auto da Índia" (1509), apresentado em Almada perante a rainha D. Leonor , é o primeiro texto teatral onde é representada uma intriga, uma história completa, e ainda por cima atual. Se o tema do adultério é intemporal, as circunstâncias "deste" adultério são as da primeira década do século XVI, quando, por trás da glória e da fachada épica da expansão ultramarina, era já possível perceber as profundas alterações, nem todas positivas, que essa expansão estava a provocar na sociedade portuguesa. A mesma ideia será expressa sessenta anos mais tarde por Camões, no episódio do "Velho do Restelo".

Há outros aspetos que distinguem este auto dos anteriores. Além de ser o primeiro a contar uma intriga, com princípio e fim, é também a primeira "farsa" escrita por Gil Vicente e a primeira das suas peças escrita maioritariamente em português. No Auto da Índia a única personagem a falar em castelhano é o "Castelhano", com o objectivo óbvio de conseguir o efeito de real. Por último, é também o primeiro auto a pôr em cena personagens femininas.

Estrutura Interna

Como vimos, o "Auto da Índia" é o primeiro auto de Gil Vicente que representa uma intriga com princípio e fim. Por esse motivo é fácil identificar a sua estrutura tripartida. A acção mostra ao público o adultério da Ama, o que exige a ausência do Marido.

Assim, a 1ª parte corresponde à fase de expectativa da Ama, relativamente à partida ou não do Marido, e à distensão que se segue à confirmação da saída da armada e que ela aproveita para confessar a sua predisposição ao adultério. Vai até ao verso 96.

A 2ª parte é a fase do adultério. Sucessivamente, entram em cena os pretendentes, Castelhano e Lemos; o adultério consuma-se; a Ama revela, sem qualquer escrúpulo ou pudor, toda a sua leviandade, falsidade e imoralidade.

A partir do verso 393 entramos na 3ª parte, que corresponde à chegada do Marido. Desaparecem as condições que propiciaram o adultério e a Ama leva ao auge a sua hipocrisia.

Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique impune, mas temos que reconhecer que o seu castigo destruiria o efeito cómico característico da farsa. Por outro lado, parece sensato pensar que o objectivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo. A mensagem implícita parece ser esta: o castigo do infractor (a Ama) não repara a falta (o adultério); o que interessa é eliminar as condições objectivas que propiciam a falta.

Espaço

Toda a acção decorre num único espaço - a casa da Ama. Os elementos textuais, no entanto, permitem subdividi-lo em três: a câmara da Ama, onde decorre a maior parte da acção; a cozinha, onde se esconde o Lemos em determinado momento e que é referida no discurso outras vezes; e o quintal, onde o Castelhano aguarda, noite fora, autorização para entrar.

Por razões de ordem técnica, facilmente compreensíveis, o espaço representado, numa peça de teatro, é sempre reduzido e neste caso é único. Gil Vicente não chegou a conhecer a estruturação das peças em actos distintos, que permitem a alternância de espaços diferentes. Daí que tenha concebido a intriga de forma a poder decorrer contínua no mesmo espaço. Para compensar essa limitação, atribuiu à personagem da Moça, além de outras, a função de mensageira: é ela que vai ao exterior e de lá traz as notícias que modificam o desenrolar da acção.

Naturalmente, o espaço aludido é bem mais vasto: estende-se à cidade, ao mar, à Índia, para onde o Marido se ausenta e de onde regressa no final da representação.

Tempo

O tratamento do tempo, no Auto da Índia, constituía para Gil Vicente um problema difícil. O facto de a acção decorrer de forma contínua num mesmo espaço sugere que os acontecimentos se sucedem ao longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. O Marido ausenta-se de madrugada; logo a seguir o Castelhano visita a Ama; o Castelhano sai e, pouco depois, Lemos chega e fica para jantar e passar a noite; entretanto, o Castelhano regressa e aguarda no quintal, durante a noite, autorização para entrar até desistir e ir embora; no dia seguinte, de madrugada o Lemos vai embora e pouco depois o Marido regressa.

No entanto, o tempo representado corresponde, não a um dia e uma noite, mas a um período de cerca de três anos. É o discurso das personagens, principalmente da Moça, que faz a marcação do decorrer do tempo e leva o público a rejeitar a duração de vinte e quatro horas. Logo de início somos informados que o Marido partiu para uma viagem marítima e deixou à mulher mantimentos para três anos:

		Leixou-lhe pera tres annos
		Trigo, azeite, mel e panos. 

A confirmação vem-nos pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido se ausentou para a Índia (v. 238). Como na época a duração média de uma viagem de ida e volta à Índia era de dois e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos espectadores, a impressão de que o tempo representado se reduz, neste momento, a algumas horas.

Numa fase mais avançada da representação é a Moça que vai marcando o decorrer do tempo e prenunciando o regresso do Marido, dizendo:

		(...) agora vai em dous annos
		Que eu fui lavar os panos
		Alem do chão d' Alcami;
		E logo partiu a armada (...) 
		
		Tres annos ha
		Que partio Tristão da Cunha. 

As personagens

Ama

É a personagem principal, a única que permanece em cena do início ao fim da representação. É em torna dela que gira toda a acção. Desse modo é fácil ao público (e ao leitor) perceber que o objectivo fundamental do autor é criticar o comportamento imoral das esposas na ausência dos maridos. No entanto, ao mandar o Marido para a Índia, Gil Vicente, implicitamente, introduz um segundo aspecto crítico: o efeito perverso que a expansão ultramarina produzia na ordem social e moral do país, facilitando a degradação moral do ambiente familiar.

A Ama apresenta-se como "moça e fermosa" e serve-se disso como justificação para o seu comportamento imoral:

		Est' era bem graciosa,
		Quem se ve moça e fermosa
		Esperar pola ira ma. 
		
		Partem em Maio daqui,
		Quando o sangue novo atiça:
		Parece-te que é justiça? 

Revela-se uma mulher sensual e leviana, incapaz de controlar os seus desejos sexuais durante a ausência do marido. Essa licenciosidade leva-a a aceitar sem dificuldade o assédio dos dois namorados (Castelhano e Lemos); leva-a mesmo a estimular as propostas imorais dos dois:

		Vós querieis ficar cá?
		Agora he cedo ainda;
		Tornareis vós outra vinda,
		E tudo bem se fará. 
		
		Que foi do vosso passear,
		Com luar e sem luar,
		Toda a noite nesta rua? 

Mostra-se desde o início uma mulher falsa, mentirosa e hipócrita. Engana, não apenas o marido, mas os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro. Colocando em cena, não um, mas dois amantes, o autor sublinha a licenciosidade e leviandade da Ama.

E a sua hipocrisia é evidente: apesar do comportamento manifestamente imoral, procura por todos os meios preservar a imagem pública de uma mulher honesta e virtuosa:

		Foi-se à India meu marido,
		E depois homem nacido
		Não veio onde vós cuidais; 
		
		A vezinhança que dirá,
		Se meu marido aqui não 'stá,
		E vos ouvirem cantar? 

Essa hipocrisia torna-se ainda mais evidente com o regresso do marido. Nessa altura garante-lhe que sofreu muito a sua ausência, que rezou pela sua segurança e permaneceu esses três anos recatadamente em casa, aguardando o seu regresso. Vai ao ponto de manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras amorosas do marido na Índia.

A imagem que ela procura transmitir para o exterior, para o marido e para os próprios amantes contrasta com o seu efectivo comportamento. Só nos monólogos e nos diálogos com a Moça é que ela revela sem disfarce a sua verdadeira maneira de ser.

E é também uma mulher extremamente manhosa e habilidosa. Consegue esconder o seu comportamento leviano do marido, mas, de certo modo, também dos amantes. Quando o Castelhano a procura e ela está com o Lemos em casa, consegue esconder a existência de cada um deles do outro.

Através da personagem Ama, Gil Vicente traça um retrato realista de um determinado tipo de mulher, bem diferente da imagem feminina, profundamente idealizada, que nos é transmitida pela poesia lírica da época (cf. poesia lírica de Camões). A Ama representa todas aquelas mulheres que, abandonadas pelos maridos empenhados na aventura ultramarina, se mostravam incapazes de resistir ao assédio dos pretendentes, incorrendo em adultério. Nesse sentido, materializa também um dos aspectos negativos da expansão.

Moça

Como personagem-tipo, representa os dependentes domésticos, obrigados a submeter-se aos caprichos e maus tratos dos patrões, que reagem a essa situação ironicamente, observando e criticando os comportamentos incorrectos dos seus senhores.

Mas esta personagem tem, na economia do auto, um estatuto especial.

Por um lado, é uma personagem, ao mesmo nível das outras, na medida em que intervém no desenrolar dos acontecimentos. Assume então o papel de confidente e amiga.

A sua presença permite à Ama revelar o seu verdadeiro carácter, que ela esconde, quer do marido, quer dos amantes. É em conversa com ela que a Ama manifesta o seu desagrado pela hipótese de o marido, afinal, não partir; o desejo de que ele não regresse da Índia; as suas infidelidades anteriores, bem como a sua intenção de o trair enquanto estiver na Índia.

Como amiga, mostra preocupação com o seu estado de espírito, quando, na primeira cena, a encontra desolada; procura tranquilizá-la, apressando-se a saber se o Marido, afinal, parte ou não parte; atreve-se mesmo a aconselhá-la, alertando-a para a fanfarronice e o carácter pouco recomendável do Castelhano:

		Jesu! Como he rebolão!
		Dae, dae ó demo o ladrão.
		(...)
		Não vos fieis vós naquelle,
		Porque aquillo he refião. 

Mas ela coloca-se também no papel de espectadora. Observa os comportamentos da Ama, diverte-se com eles e julga-os severamente. Essa crítica é feita quase sempre em apartes.

Desmente as acusações feitas pela Ama ao marido:

		Todas ficassem assi.
		Leixou-lhe pera tres annos
		Trigo, azeite, mel e panos. 

Condena o seu comportamento devasso, a sua manha e hipocrisia:

		Quantas artes, quantas manhas,
		Que sabe fazer minha ama!
		Hum na rua, outro na cama! 

Manifesta satisfação, com um certo sabor de vingança pelas humilhações sofridas, quando o regresso do Marido põe termo aos arranjos da Ama:

		Raivar, que este he outro jôgo. 

Quando interrogada pela Ama sobre os seus apartes, responde-lhe ironicamente, declarando em voz alta o contrário do que transmitira ao público, o que produz um imediato efeito cómico.

A par disso tudo, funciona como intermediária entre o interior e o exterior. É ela que sai, logo no início, para confirmar a partida do marido. É ela, igualmente, que traz da rua a notícia do seu regresso. Com a acção concentrada num espaço único e limitado (a câmara, a cozinha e o quintal da casa da Ama) era necessária uma personagem que funcionasse como mensageira e introduzisse no diálogo as notícias que suscitam alterações dramáticas no desenrolar da intriga.

Além disso, como já foi referido, é a ela que o autor atribui a função de marcar o decorrer do tempo representado: primeiro, prenunciando a duração de três anos; mais tarde, anunciando efectivamente o decorrer do tempo (dois anos..., três anos...).

É uma mulher de idade indefinida; subserviente, por necessidade; fiel à sua ama, que nunca denuncia; perspicaz e atenta aos comportamentos da sua senhora; sensata, pois não se deixa iludir pelo aparato e as falas pomposas do Lemos e do Castelhano; crítica, é a única personagem que mostra ser capaz de distinguir claramente o certo do errado.

Castelhano

É uma personagem de origem social humilde, provavelmente um vendedor ambulante (é certamente a ele que a Ama se refere, quando fala no "castelhano vinagreiro"). Oportunista, procura imediatamente seduzir a Ama, assim que se apercebe da ausência do marido. Utiliza como estratégia de sedução a lisonja e um discurso empolado, retórico, excessivo e inadequado ao seu estatuto humilde. Ao mesmo tempo revela-se um fanfarrão, exagerando a sua valentia. O excesso, quer do discurso, quer da fanfarronice, tornam-no ridículo, perante o público e perante a Ama.

A imagem de homem culto, civilizado, que procura transmitir com a sua pomposa declaração (culto da aparência), é desfeita na sua segunda intervenção, ao reagir com grande violência verbal, quando se sente rejeitado pela Ama, impossibilitada de o receber, devido à presença de Lemos.

O modo como se veste revela a sua origem humilde, que ele procura disfarçar, insinuando ser homem de posses, apesar do aspecto que apresenta. Através dele (e de Lemos, como veremos), Gil Vicente aproveita para introduzir um outro tópico de crítica - o culto das aparências, típico duma sociedade onde os bens materiais são já o valor dominante:

		Que aunque tal capa me veis,
		Tengo mas que pensareis:
		Y no lo tomeis en grueso. 

Embora não se sinta nada impressionada com a apresentação espalhafatosa do castelhano, a Ama aceita-lhe a corte e marca-lhe um encontro amoroso, o que serve para acentuar o seu carácter leviano.

Lemos

Lemos, tal como o Castelhano, é introduzido na peça para caracterizar a Ama como uma mulher leviana e adúltera.

Trata-se de um escudeiro pobre, que procura esconder a decadência, com modos delicados e um discurso galanteador. Também ele documenta o culto das aparências, com mais sucesso do que o Castelhano, visto que o estatuto social superior e as suas maneiras delicadas seduzem a Ama e levam-na a preferi-lo ao Castelhano.

Ostenta um desafogo material que não engana a Moça, quando presunçosamente a manda fazer compras, pois de imediato rejeita os alimentos caros e dá-lhe muito pouco dinheiro para as despesas.

		Vá esta moça à ribeira
		E traga-a ca toda inteira,
		Que toda s' ha de gastar. 

Também ele procura (e consegue) aproveitar-se da ausência do Marido para obter os favores sexuais da Ama, que, aliás, mostra ter percebido há muito a corte distante de Lemos.

Marido

O Marido está fisicamente ausente, ao longo da maior parte da representação; só no final entra em cena, encerrando desse modo o conflito dramático. De facto, a sua ausência é condição essencial para que a intriga se desenvolva no sentido pretendido pelo autor: é ela que cria as condições necessárias para que a leviandade da Ama se transforme em adultério, o que, provavelmente, já acontecera antes:

		Hi se vai elle a pescar
		Meia legoa polo mar,
		Isto bem o sabes tu; 

No contexto, a expressão "Isto bem o sabes tu" perde toda a ambiguidade e fica claro que significa "bem sabes que lhe sou infiel".

Podemos talvez falar de uma "ausência-presença", já que a sua existência condiciona o desenrolar da acção: é o seu afastamento que permite os avanços amorosos do Castelhano e do Lemos e o adultério da Ama, do mesmo modo que o seu regresso põe fim (ao menos por algum tempo) a essa situação.

Representa todos aqueles portugueses com experiência marítima, pescadores ou marinheiros, que se alistavam nas armadas para a Índia, na mira de um enriquecimento fácil, impossível no Reino. A Índia constituía na época uma miragem, um mundo de riquezas, aparentemente ao alcance de quem tivesse coragem para enfrentar os riscos e desconfortos da viagem.

Na mira do lucro fácil dispunham-se a correr todos os riscos: viagens demoradas e perigosas; doenças fatais; tempestades; climas estranhos e doentios; combates com os habitantes locais. Para os que conseguiam regressar, quase sempre o lucro era reduzido. A própria personagem o reconhece, dizendo

		Se não fôra o capitão,
		Eu trouxera, a meu quinhão,
		Hum milhão vos certifico. 

Daí que muitos entendessem que não se justificava o sacrifício de ir procurar tão longe um lucro improvável. De certo modo o Castelhano exprime essa ideia ao dizer

		Que mas India que vos,
		Que mas piedras preciosas,
		Que mas alindadas cosas,
		Que estardes juntos los dos? 

Esse desejo insensato de enriquecer rapidamente tem consequências. Com o seu chefe afastado, algumas famílias passam necessidades. Não foi isso que aconteceu com a Ama, mas a sua acusação, embora mentirosa, alerta-nos para uma realidade que deveria ser muito frequente:

		Leixou-me aquelle fastio
		Sem ceitil. 

Mas todas elas ficavam afectivamente desamparadas: famílias sem pais e sem maridos, sujeitas aos assédios dos oportunistas. Nessas condições o adultério era sempre possível e muitas vezes concretizava-se. A personagem-tipo do Marido representa portanto todos os maridos enganados pelas esposas, que, na sua ingenuidade, aceitam como boas todas as manifestações de amor e fidelidade das respectivas consortes.

Pode então dizer-se que esta personagem condensa os aspectos negativos da expansão portuguesa.

 

Cómico

Sendo o Auto da Índia uma farsa, um dos objectivos do autor era divertir o seu público, recorrendo para isso ao cómico.

Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de cómico.

O cómico de linguagem resulta da exploração de certas virtualidades da língua; aquilo que se diz e o modo como se diz suscita o riso no espectador. No Auto da Índia está presente ao longo de todo o texto, por exemplo em algumas expressões insultuosas dirigidas pela Ama à Moça, mas sobretudo na fala do Castelhano, pomposa, exagerada, cheias de expressões de cunho literário, que, por inadequadas às personagens e à situação, provocam o riso na Ama e no público.

O cómico de carácter resulta da própria maneira de ser e de se comportar de determinadas personagens. O Castelhano, pelo seu exagero, pela sua fanfarronice, pelo contraste entre aquilo que diz e aquilo que é constitui um bom exemplo desse tipo de cómico. Também o Marido, pelo modo ingénuo como aceita todas as declarações da Ama, exemplifica este tipo de cómico. Na personagem de Lemos é possível igualmente encontrar o cómico de carácter, ao apresentar-se com um chapéu ("sombrero") excessivamente grande e ao ter que revelar a sua sovinice perante o hábil interrogatório da Moça. A própria Ama, pela hipocrisia com que fala ao Marido e finge ciúmes, documente também este tipo de cómico.

O cómico de situação surge quando, no decorrer da representação, uma personagem é colocada numa posição ridícula. É o que acontece com o Castelhano, obrigado a aguardar no quintal, ao frio, durante a noite, autorização para entrar em casa da Ama. O mesmo acontece, quando Lemos é constrangido a esconder-se na cozinha para que a Ama possa tranquilamente falar com o Castelhano.

Por outro lado, Gil Vicente lança mão de determinados recursos para obter efeitos cómicos. Consegue-o pela ironia, sobretudo nas falas da Moça, ao fazê-la dizer em voz alta à Ama o contrário do que tinha declarado no aparte anterior. Recorre igualmente à caricatura, que consiste em exagerar um ou mais traços específicos de uma dada personagem, como acontece no caso do Castelhano. Por fim lança mão da sátira, isto é, da crítica divertida dos comportamentos humanos.

 

Crítica social

Conforme já vimos, com esta farsa Gil Vicente procura criticar situações e comportamentos sociais. Quais são eles?

  • Degradação moral da família, traduzida no adultério, facilitado pela ausência prolongada dos maridos envolvidos na aventura colonial
  • Motivações egoístas e interesseiras da expansão ultramarina
  • Materialismo da sociedade, traduzido na busca de um enriquecimento rápido
  • Culto das aparências, com as pessoas a procurarem ostentar uma posição e uma riqueza que, de facto, não possuem

 

Caráter documental e atualidade da obra

O valor documental deste auto é inegável e resulta evidente das anotações anteriores. Cada uma das personagens representa um tipo social, com seu comportamento próprio e seus defeitos, que são habilmente ridicularizados. O texto permite-nos apreender a outra face da gesta dos Descobrimentos, a face menos heróica, mais prosaica, pondo a nu as motivações materialistas dos agentes da expansão e os efeitos perversos que ela tinha sobre a estrutura familiar e social. Nesse aspecto podemos considerá-la como o contraponto d' Os Lusíadas.

Por outro lado, há no texto aspectos intemporais que lhe concedem uma inegável actualidade. Descontados os aspectos circunstanciais, as críticas de Gil Vicente são perfeitamente actuais: é actual a infidelidade no casamento, a falta de respeito pelos compromissos assumidos; é actual o materialismo desenfreado, a hipervalorização dos bens materiais em detrimento de valores mais nobres; actual é também a crítica da ostentação, do culto das aparências.